terça-feira, 16 de julho de 2013

A História que nos contam

Keith Maurice Ellison foi o primeiro muçulmano a ser eleito para o Congresso Americano em 2007. "E então?", perguntar-se-á o leitor. "Não só esta é uma notícia dada com 6 anos de atraso como não tem nada de especial, o Islão está em crescimento nos Estados Unidos da América logo não é nada de especial que um muçulmano tenha sido eleito".

Se está a pensar isto, de facto tem razão. É uma notícia muito atrasada e a eleição de um muçulmano para o Congresso não espanta pelos motivos atrás referidos. O que chama a atenção é o facto de Keith Ellison ter feito o juramento não em cima de uma Bíblia (como é costume) mas sim em cima de uma cópia do Alcorão que pertenceu a Thomas Jefferson. Chama a atenção não pelo facto de ter feito o juramento em cima de uma cópia do Alcorão (é o livro sagrado da religião dele logo não fazia sentido usar uma Bíblia) mas pelo facto de ter sido utilizada a cópia pertencente a Thomas Jefferson, um dos pais fundadores dos EUA e um dos responsáveis pela Declaração de Independência americana. Não sei ao certo qual a percentagem de americanos que antes de 2007 saberiam que Thomas Jefferson possuía uma cópia do Alcorão (suponha que seja extremamente reduzida), mas depois de 2007 houve quem não tivesse dúvidas: a Declaração de Independência americana foi definitivamente influenciada pelo Alcorão, as referências a igualdade de direitos e liberdade de religião para todos referenciadas na Declaração estavam presentes no Alcorão mais de 1000 anos antes da criação Declaração, Marrocos, país muçulmano, foi o primeiro país a reconhecer a existência dos EUA como nação independente, etc, etc, etc, como se pode ver aqui:




Só que há um pequeno grão de areia na engrenagem. E por "pequeno grão de areia" eu quero dizer "um enorme problema e uma história que está por contar". Ninguém explica o porquê de Thomas Jefferson ter uma cópia do Alcorão. "Bem, Thomas Jefferson era um homem culto, de certeza que se quis informar acerca de outras religiões, aprender mais, expandir os seus horizontes e ganhar conhecimentos que lhe permitissem alterar os EUA para melhor", dirá o leitor. De facto, essa é a imagem que se tem de Thomas Jefferson (e do resto dos fundadores da América), imagem essa para a qual não sei de provas em contrário.

Mas para saber a razão de Thomas Jefferson possuir uma cópia do Alcorão temos de viajar atrás no tempo até ao ano de 1784. Após o final da guerra da independência em 1783, os navios americanos viajavam pelos oceanos com a bandeira americana. A 11 de Outubro de 1784 um bergantim americano foi capturado por corsários otomanos. Nada de especial para quem conhecesse a situação no Mediterrâneo, mas para os americanos, cujos navios estiveram protegidos pela marinha britânica enquanto foram colónia inglesa e pela marinha francesa durante a guerra da independência americana o ataque foi considerado completamente despropositado.

Mas primeiro, um pouco de informação histórica: corsários otomanos era o nome dado a uma série de corsários (piratas autorizados por uma nação a atacar navios de outra nação) que atuavam no Mediterrâneo, com bases na costa africana (especialmente nas cidades de Tunes, Tripoli e Argel). Estes corsários atacaram principalmente navios e costas europeias mediterrânicas (incursões com o intuito de capturar escravos) desde o fim do império romano até 1830, quando a França conquistou Argel, no entanto foram registadas incursões de corsários otomanos até tão a norte como a Islândia e Gronelândia (o que tendo em conta a história viking tem o seu quê de kármico). A economia da costa berberisca estava dependente dos tributos de países estrangeiros da mesma forma que em 2011 Portugal estava dependente do FMI.

De volta a 1784: a libertação dos marinheiros capturados foi acordada com o auxílio do governo espanhol, que aconselhou o governo americano a fazer o mesmo que os estados europeus: pagar tributo ao império otomano para garantir a passagem em segurança de navios no Mediterrâneo (era mais barato do que partir para a guerra).
Para tal, o governo americano enviou uma delegação a França para dialogar com os representantes otomanos, delegação essa que incluía Thomas Jefferson. As negociações prolongaram-se durante dois anos e em 1786 foi assinado um tratado de paz com Marrocos. Após o fim das negociações, Jefferson falou com o embaixador otomano. Não posso garantir que as palavras proferidas foram exactamente estas, mas ponho as mãos no fogo pelas ideias e conteúdo da conversa, já que estão registados por Thomas Jefferson no seu diário:

Thomas Jefferson - "Epá, andamos nisto vai fazer dois anos. Já nos conhecemos razoavelmente bem, temos um respeito mútuo. Portanto diga-me lá, porque é que nos atacam os navios? Nós nunca vos atacámos nem fizemos nada que vos prejudicasse, portanto gostava de saber o porquê destes ataques contra navios de mercadorias americanos indefesos"

Embaixador Otomano - "Amigo Thomas, não tem nada que enganar. Vocês não são muçulmanos e está escrito no meu livro sagrado que eu tenho o dever de atacar as vossas caravanas (sejam caravanas de camelos ou de navios, para mim é igual ao litro), tomar as vossas riquezas e fazer escravos dos vossos homens, mulheres e crianças até vocês se converterem ao Islão ou até pagarem a jizya e reconhecerem a nossa superioridade. E todos os muçulmanos que morrerem a fazer cumprir a lei divina têm garantido um lugar no Paraíso, onde têm à sua espera 72 virgens de seios amplos e ereções permanentes."

TJ - "Não pode!"

EO - "Palavra!"

TJ - "Não pode!"

EO - "Tou-lhe a dizer!"

TJ - "Epá, só acredito quando vir isso. Em chegando à América vou arranjar uma cópia do Alcorão e ver se isso é verdade porque sinceramente acho que está a gozar comigo."

EO - "Faça o que achar melhor meu amigo. E caso se decida converter ao Islão, ligue-me para combinarmos uma peregrinação a Meca".

(Para quem tem curiosidade no rigor histórico, as palavras exatas são "It was written in their Koran, that all nations which had not acknowledged the Prophet were sinners, whom it was the right and duty of the faithful to plunder and enslave; and that every mussulman who was slain in this warfare was sure to go to paradise. He said, also, that the man who was the first to board a vessel had one slave over and above his share, and that when they sprang to the deck of an enemy's ship, every sailor held a dagger in each hand and a third in his mouth; which usually struck such terror into the foe that they cried out for quarter at once" e estão registadas no documento "American Peace Commissioners to John Jay,"28 de Março de 1786, "Thomas Jefferson Papers," Series 1. General Correspondence. 1651–1827, disponível na biblioteca do congresso americano)

Posto isto, digam lá se a relevância dada ao facto de os EUA nunca terem atacado muçulmanos (em 1786, hoje em dia as coisas mudaram...) no Tratado de Tripoli ganha ou não outra perspetiva... Digam lá se o interesse de Marrocos em reconhecer os EUA como nação independente não teve segundas intenções... É ou não é espantoso como um pouco de informação correta pode mudar drasticamente a perspetiva de alguns eventos?

Para quem tem curiosidade e quer saber como é que as coisas acabaram, os EUA pagaram tributos durante uns anos até formarem uma marinha (na altura a constituição dos EUA não falava em exército e marinha, como a maioria dos cidadãos americanos possuía armas de fogo sempre se pensou que caso os EUA fossem invadidos se criariam milícias para lutar, tal como aconteceu na guerra da independência, nunca se tendo pensado que os EUA pudessem ter que lutar para defender interesses americanos no exterior). Em 1801, quando os EUA decidiram deixar de pagar tributo e enviar navios de guerra para proteger os navios mercantes americano, o tributo pago era cerca de 20% do PIB americano. Em 1805 foi assinado o tratado de paz, que começou a ser desrespeitado pelos otomanos em 1807, já que os americanos estavam mais atentos aos acontecimentos que deram origem à guerra de 1812 no que é hoje o Canadá em detrimento do que se passava no Mediterrâneo. Em 1815 os EUA voltam a enviar navios para a costa mediterrânica e ainda em 1815 foi assinado um tratado que libertava os EUA do pagamento de tributo dando aos navios americanos a liberdade de navegar no Mediterrâneo.

Uma pequena curiosidade: uma das opções para libertar os prisioneiros americanos durante a primeira guerra berberesca (1801-1805) era a deposição do paxá de Tripoli, colocando em seu lugar o seu irmão, que era tinha sido deposto e era o paxá por direito. O primeiro confronto entre forças americanas e forças provenientes de um país muçulmano (quase 200 anos antes da 1ª Guerra do Golfo) marca também a primeira tentativa americana de interferir num governo estrangeiro, substituindo um governo por outro que melhor defendesse os interesses americanos na região.

Ainda outra pequena curiosidade, desta vez a nível pessoal: quando ouvi falar sobre este assunto, um dos recursos que utilizei para pesquisar informação sobre o assunto foram quadros de mensagens e fóruns na internet. Houve uma conversa que me ficou na memória mesmo passados 5 ou 6 anos num fórum em inglês cujo nome infelizmente já não me lembro. A designação em inglês dos corsários otomanos é "barbary pirates". Nesse fórum houve alguém que me disse "eles não eram piratas, eram sim a marinha desses países e tinham todo o direito de cobrar taxas de passagem para navios que cruzassem as suas águas já que eram eles que asseguravam a segurança das suas águas territoriais. Infelizmente as universidades ocidentais são tendenciosas e ensinam a história mal, mas asseguro-lhe que nos seus países eles nunca foram considerados piratas". Ao que eu respondi com qualquer coisa como "onde é que atacar navios de outros países no meio do mediterrâneo (águas internacionais) e fazer incursões para obter escravos nas costas de países europeus conta como impor segurança nas águas territoriais de Marrocos ou Algéria?". Ainda estou à espera da resposta...

3 comentários:

  1. Respostas
    1. Isabel, vai ter de me explicar o que é que esse link tem a ver com o post... Não vejo lá nenhuma informação relacionada com os factos históricos por mim apresentados e discutidos, nomeadamente com as insinuações por parte de alguns meios de comunicação social (provavelmente mais liberais, pelo menos a julgar pelas liberdades históricas a que se dão) de que a Declaração de Independência Americana de 1776 foi influenciada pelo Alcorão de Thomas Jefferson quando este apenas adquiriu uma cópia do Alcorão depois de 1783.

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  2. E daí? Essas pessoas são contra o direito de Israel existir. Nada de novo. O Hitler também era. O PNR também. O Partido Comunista também. O Kim Il, o Arafat, o Saddam, o Fidel, o Kadáfi, o bin Laden, o Robert Mugabe (com o seu bigodinho à Hitler... tudo o que é ditador, terrorista, nazi, fascista, é.

    Os FACTOS, o Direito Internacional, e a decência humana não vão nessa direcção. Há que estudar em vez de procurar obsessivamente propaganda anti-Israel. É típico de quem já tem opinião antes de conhecer os FACTOS, encontrar algum judeu ou alguma organização supostamente judaica que seja contra o Estado de Israel e achar que descobriu a pólvora.

    Um grande abraço si!

    I.B.

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