A longa marcha que nos trouxe de “O Capital” até “As Cinquenta Sombras de Grey”
A Europa em declínio onde o relativismo é a ideologia sobrante e a encenação da humilhação a última transgressão, ou começa a ler outros livros ou vai descobrir que a sua fantasia se tornou realidade
Há alguns anos o povo lia “A Rosa do Adro” e os filhos das elites “O Capital”. Agora lêem todos “As Cinquenta Sombras de Grey”.
Não, não vou lamentar a degradação literária que tal implica – “A Rosa do Adro” é um romance insuportavelmente mal escrito e “O Capital” não primava propriamente pela clareza. Mas os livros valem também porque acusam as inquietações dos leitores num determinado tempo. Hoje os amores entre fidalgos e pobres já não animam o povo que, bem mais prosaico, quer é contar os seus amores na televisão e já agora, se tal der dinheiro, praticá-los também em directo e ao vivo. Já os filhos das elites preferem dedicar-se ao pensamento positivo em vez de queimarem as pestanas a comparar as diversas traduções revisionistas dos textos de Marx ou a ler aqueles condensados que explicavam a passagem do socialismo utópico para o científico. Afinal de que lhes serviriam tais exercícios nestes tempos em que, acabado o dinheiro para distribuir, o socialismo se transformou ora numa subsecção da ornitologia com os passarinhos a divulgar o pensamento revolucionário de Chávez, ora numa barraca de ilusionismo com os líderes socialistas a prometer investimento público e repor o que foi cortado?
Esta irrupção de “As Cinquenta Sombras de Grey” e seus sucedâneos pelas mesinhas de cabeceira do Ocidente tornou-se-me uma evidência, se quiserem até uma fatalidade, quando nos últimos dias dei comigo a acompanhar os acontecimentos em Gaza. Durante dias e dias coleccionei factos, vídeos, textos, noticiários sobre o conflito na Faixa de Gaza. Repórteres arfantes falavam de genocídio, mães que choravam filhos, casas destruídas… Não havia mais do que duas ou três palavras sobre a transformação das escolas em paióis por parte do Hamas e muito menos se vislumbrava qualquer tentativa por parte dos jornalistas de confrontar as autoridades palestinianas com esse facto. Não era possível que ao noticiarem a destruição da única central eléctrica existente na Faixa de Gaza não acrescentassem que, mesmo em pleno conflito, Israel fornece energia eléctrica a Gaza pois apesar de toda a ajuda canalizada para aquele território ali apenas existe uma central eléctrica sendo a restante energia fornecida por Israel e pelo Egipto. Não queria acreditar que se falasse do pecado original da fundação de Israel como se anteriormente existisse naquele local um estado palestiniano…
Diante de tanta condescendência, quando não fascínio pelo terrorismo, pela opressão e pela barbárie presentes na ideologia do Hamas, toda aquela tranquitana de chicotes, coleiras e rituais de humilhação que agora enchem montras de lojas e páginas e páginas de sucessos de livraria configurou-se diante dos meus olhos como um símbolo: onde antes estavam as foices e os martelos estão agora os chicotes. Nos tempos da foice e do martelo boa parte da intelligentzia ocidental sonhava em ser vermelha. Agora já não sonha. Só quer que a dominem. Ver os seus a serem derrotados é a sua fantasia. E politicamente falando Gaza é a sua fantasia. Não a sua causa, que já não as tem.
Em Gaza não há repórteres-activistas como aqueles que nos anos 70 do século passado davam conta da extraordinária capacidade administrativa do PAIGC no que chamavam zonas libertadas da Guiné Bissau. Ou dispostos a afiançar o radioso futuro de Moçambique e de Angola sob as lideranças libertadoras da Frelimo e do MPLA. Ou indo mais longe para descreverem a maravilhosa vida no Cambodja dos Khmers vermelhos. Não. Esse tempo, o tempo em que “O Capital” desenhava o futuro acabou.
Nenhum dos repórteres lacrimejantes que nos têm relatado esta intervenção israelita em Gaza estaria disponível para trabalhar sob o jugo do Hamas (Tal como desapareceram do Egipto mal a realidade lhes desfez as exaltações místicas com o que designavam como Primavera árabe). Muito menos os indignados manifestantes que por esta Europa fora têm gritado o seu horror pelo ataque israelita tolerariam aos seus governos o menor descuido no que respeita à segurança das suas preciosas vidas. Nenhum deles espera que Gaza seja diferente daquilo que é, aliás nem lhes interessa o que é e muitos nem sabem onde fica. Gaza é o espaço simbólico onde se libertam da rotina. Sem riscos para si mesmos, claro.
Relativamente conformada com esta evidência – não vale a pena combater uma fantasia – descobri um mundo novo. Ou melhor dizendo, dois.
O primeiro dá conta do interesse crescente dos europeus por aquilo que preteritamente se designava como sadomasoch e agora é todo um universo de siglas e de peripécias. Por estes dias sigo com consternação as tentativas de um empresário catalão de abrir, numa pequena localidade espanhola, um hotel equipado com uma masmorra de 500 metros quadrados onde estão à espera de utilizadores potros de tortura, cruzes de Santo André e ganchos para suspensão. Espaço esse que por agora não tem podido funcionar na sua totalidade não por falta de gente disposta a experimentar tais apetrechos mas sim porque não foram ainda emitidas as devidas licenças. Note-se que as licenças em causa versam não estes equipamentos mas sim a segurança das escadas e demais detalhes que as ASAE’s de cada país inventam. Afinal um cidadão europeu tem o direito de pagar para que lhe estiquem os membros num potro ou para chicotear alguém, agora o que não pode ficar ao seu arbítrio é servir-se de azeite embalado em galheteiros reutilizáveis ou descer escadas cujos degraus têm dimensões não normalizadas.
Também tenho informação abundante sobre as desditas ocorridas neste nosso continente aos cada vez mais numerosos praticantes da arte do Shibari, uma técnica japonesa, milenar e complicadíssima como tudo no Japão, que transforma qualquer ser humano numa espécie de embrulho. Os noticiários europeus sobre o conflito de Gaza parecem-me agora muito mais claros desde que descobri o Shibararetai, a saber o desejo de ser amarrado por alguém a quem os origamis humanos chamam mestre.
Quanto ao segundo mundo que descobri devo-o aos vídeos do Hamas, à Al Jazeera e meios de comunicação similares que desde há dias tenho como minha fonte quase exclusiva de informação sobre Gaza. Não só tem sido um sossego – aquela não é a minha gente logo não me irrito com eles –, como na verdade estou também muito melhor informada pois se continuo a ver apenas a versão do Hamas, a verdade é que, como referiu o Paulo Tunhas, a própria militância induz à exposição, logo vejo mais: vejo também aqueles que o Hamas identifica como seus inimigos a serem executados e os seus cadáveres arrastados pelas ruas; vejo crianças com cuja vida ninguém se preocupa carregando com mísseis até à fronteira e a serem doutrinadas para o martírio na escola. Em boa verdade até encontro referências a palestinianos feridos no conflito que estão a ser tratados em Israel e ao desgraçado destino dos trabalhadores, muitos deles ainda crianças, que cavam os túneis por onde o Hamas infiltra os seus homens em território israelita. Ou seja estamos longe da versão dos media ocidentais que transforma os palestinianos nuns seres sem vontade, cuja vida depende em absoluto de Israel e os simplifica a ponto de não serem referidas as divergências políticas entre os palestinianos residentes na Faixa de Gaza e os da Cisjordânia.
Esta Europa em declínio onde o relativismo se tornou a ideologia sobrante e a encenação da humilhação a derradeira transgressão, ou começa a ler outros livros ou vai descobrir tarde, muito tarde, que a sua fantasia de submissão se tornou realidade.
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Esta entrada vai ilustrada com um cristal de neve, porque foi a melhor analogia que encontrámos para LIMPIDEZ, PUREZA, CLARIDADE.
Transcrevemos alguns comentários:
As meditações prisionais de Gramsci deram os seus frutos. O mundo tornou-se melhor, recheado de pessoas justas e honestas. De esquerda, portanto. Pessoas que não falam nem pensam no vil metal. Sendo Costa um exemplo.
A esquerda também nos mostra como a pobreza não é impeditiva de se ter boa vida. Sócrates – não o grego -, outro exemplo.
Tais meditações – de Gramsci, portanto (o Mestre que guia as vidas de quem desconhece que ele alguma vez existiu) – levaram à adaptação de provérbio popular: “quem não é de esquerda não é filho de boa gente”.
E chegou-se ao ponto em que a esquerda já não lê. Não por elogio à ignorância (Lula, o exemplo maior), mas por já ter lido (no caso: absorvido) tudo o que havia para ler.
A cultura é (só) de esquerda. O civismo também. Desenvolvimento, idem.
No outro lado também existem alfabetizados. São os (auto) denominados intelectuais de direita ou neo-liberais.
O povo de esquerda tem um problema: a atracção pelo abismo. Embirra em viver nos países não socialistas. E os que vivem, embirram em querer fugir para o inferno do capitalismo. Diz-se, para melhor o aniquilar. E confirma-se, pois em nome da liberdade, combatem-na, e utilizando o sistema financeiro, destroem-no (utilizando a arma do “não pagamos”).
A grande incógnita, é: e quando todo o mundo for de esquerda?